O fortalecimento das
demonstrações em
geometria elementar na virada do século
XX
por
Michel Guillerault
Laboratório Leibniz
Grenoble - França
No fim do século XIX e início do
século XX, desde M.Pasch e sobretudo depois D.Hilbert
(Grundlagen der Geometrie, 1899), há uma
preocupação de se estabelecer a geometria
elementar sobre bases sólidas, não fazendo
mais, implicitamente, referência aos casos de figuras
particulares que possam se apresentar.
Apresentamos aqui a
contribuição a este debate de um relativamente
modesto professor de classes preparatórias às
Grandes Escolas francesas, parecendo-nos bastante esquecido
nos nossos dias, Louis gérard, professor em Lyon e
depois em Paris, especialista em geometria não
euclideana (tese, 1892) e bastante preocupado em apresentar
os teoremas da geometria elementar de uma maneira a mais
rigorosa possível. Redator do Bulletin de Sciences
mathématiques et physiques, publicou numerosas notas
sobre o assunto e é autor (com a
exceção de uma só) de todas as
citações que irão se seguir. Em
particular, ele é o promotor infatigável da
noção de ângulos orientados de retas,
noção que permite dar a numerosas
proposições de geometria um caráter
absolutamente geral, independente do caso da figura
considerada.
Durante séculos, a obra de Euclides serviu, com
uma certa fidelidade ao seu texto inicial, de modelo para o
ensino da geometria elementar. Cada autor de manual
respeitava a divisão geral em livros, e no interior
de cada livro, a disposição e a
formulação dos diferentes resultados ou
teoremas, mesmo se comentários mais ou menos
originais pudessem, se houvesse ocasião, ser
acrescentados ao texto. Em particular, eram relativamente
raros os autores que se permitiam acrescentar complementos,
abrangendo casos de figuras esquecidas ou negligenciadas por
Euclides.
"Não podemos deixar
de repetir que a principal falha das
demonstrações seculares é que elas
deixam de lado as relações de
situação e que estas relações
são na maioria das vezes mais difíceis de
se demonstrar que o teorema que se tem em vista , de
maneira que é mais fácil achar uma nova
demonstração do que corrigir a antiga."
(B.M.E., 6, 1901, p. 132).
"Para estabelecer as
propriedades do paralelogramo, admite-se implicitamente
que dois vértices opostos estão situados de
um lado e do outro da diagonal que liga os outros dois
vértices; os alunos se sentiriam bastante
embaraçados se lhes pedíssemos por dar em
uma demonstração precisa" (B.M.E.,
6, 1901, p.132).
É desta forma, que na proposição 20
do livro III, Euclides demonstra que o ângulo central
é o dobro do ângulo inscrito correspondente
(para um ângulo inscrito agudo), considerando
dois casos:
Na figura à
esquerda, o ponto D diametralmente oposto a A é sobre
o arco menor BC,
na figura à direita, ele está sobre o arco
maior BC.
Certos comentaristas (de Clavius do século XVI
até o fim do século XIX) acrescentam um
terceiro caso de figuras ( o ponto D é confundido com
B ou C), mas nenhuma palavra é dita sobre o que pode
se passar se o ângulo é obtuso. Em
outras palavras, apesar de nos Elementos, um ângulo
poder ser tanto agudo quanto obtuso, quando chegamos
à proposição 20 do livro III, uma
restrição totalmente implícita é
de rigor, sem que isto parece embaraçar
ninguém no fim do século.
Passando ao teorema do quadrilátero
inscritível (condição para que quatro
pontos estejam sobre uma mesma circunferência), os
autores se contentam em fazer intervir a noção
de arco capaz, ou de igualdade de dois ângulos
subentendendo o mesmo arco. Nota-se claramente , desde
Euclides (III,22), que os ângulos opostos de um
quadrilátero inscrito são suplementares
( e não iguais), mas cada vez que, na
demonstração de um resultado, intervém
a propriedade do quadrilátero inscritível,
raciocina-se sobre o caso da figura apresentado, sem a
preocupação daquilo que deveria ser modificado
num outro caso de figura, ou mesmo, sem se preocupar em
demonstrar que o caso da figura apresentado existe
realmente.
"Em geometria elementar,
considera-se o valor absoluto dos ângulos sem levar
em conta o sentido e sem distinguir o lado origem do lado
extremidade. Disto resulta uma série de
complicações. Por exemplo: se A,B,C,D
são quatro pontos de uma mesma
circunferência, os ângulos ACB e ADB
são suplementares ou iguais, de acordo com a
posição dos pontos C e D de um lado ou do
outro lado de AB. Do mesmo modo, dois ângulos de
lados paralelos ou perpendiculares são iguais ou
suplementares. Portanto, nas questões onde
intervêm ângulos desta natureza, deve-se
olhar todos os casos possíveis; costuma-se quase
sempre dispensar este procedimento contentando-se em
examinar o caso da figura que temos sob os olhos".
(B.M.E., 1, 1895, p. 1).
"A consideração da
semi-reta, ou, o que dá na mesma, do sentido da
reta, é necessária, se precisarmos contar
segmentos sobre esta reta; em todos os outros casos, ela
cria um embaraço que desaparece quando se atribui
ao ângulo de duas retas inteiras uma qualidade
nova, o sentido, isto quer dizer se se distingue um do
outro os dois lados do ângulo. E assim não
há que uma só direção da
reta, em vez de duas, que faz com uma reta dada um
ângulo dado; a distinção entre a
simetria em relação a um ponto e a simetria
em relação a uma reta de um plano se torna
precisa; o lugar geométrico dos pontos dos quais
se vê um segmento de reta sob um ângulo dado
se compõe, não mais de dois arcos de
circunferência, mas de uma circunferência
inteira, resultado mais de acordo com o cálculo,
e, em seguida desaparece a idéia estreita e
obsoleta de segmento capaz de um ângulo dado . Os
autores ( B. Niewenglowski, et L.Gérard)
dão ao mesmo tempo a condição
necessária e suficiente, independente das formas
particulares da figura, para que quatro pontos estejam
sobre uma mesma circunferência" (C. Michel,
B.M.E., 5, 1900, p. 93).
Parece que é na Géométrie de
J. Hadamard (1897) que o teorema sobre o quadrilátero
inscritível é dado sob a forma
necessária e suficiente agora clássica
"Se os quatro pontos A,B,C,D estão sobre
uma circunferência, os ângulos de mesmo
sentido formados pelas retas AC, AD de um lado e BC e BD
do outro, são iguais (e reciprocamente)"
(Hadamard, Géométrie plane, 1897,
pp. 71-72).
Faltam neste texto a notação (AC, AD)
(usada por L.Gérard) e uma enumeração
das propriedades do ângulo orientado de retas (
relação de Chasles, passagem ao oposto,
etc...) para que se use esta noção na
resolução de problemas de geometria.
O exemplo da
demonstração da propriedade chamada "reta de
Simson"
Uma propriedade da geometria elementar, que é
consequência da propriedade do quadrilátero
inscritível, surge como exemplo de
aplicação ou como exercício, na
totalidade dos manuais ou cursos de geometria do
século XIX ( e também do século
seguinte...)
Se se considera um ponto M
da circunferência circunscrita a um triângulo
ABC, as projeções ortogonais do ponto M
sobre os três lados do triângulo são
três pontos alinhados (seguindo uma reta chamada
reta de Simson)
Esta propriedade não parece ser devida a Simson,
mas a Wallace; entretanto, apesar dos esforços para
promover o nome "reta de Wallace"(ver por exemplo
Intermédiaire des Mathématiciens, anos
1894 e 1895), os manuais antigos ou modernos falam todos da
reta de Simson. Numerosas propriedades da geometria
elementar, utilizando a reta de Simson foram descobertas com
o passar do tempo, formando um verdadeiro capítulo da
geometria do triângulo. O que quer que seja, esta
propriedade foi popularizada no início do
século XIX. Veremos por exemplo uma
demonstração clássica, que parece ser
devida a Duhamel ( por volta de 1840):
O teorema da reta de Simson
(demonstração clássica
(Duhamel?))

Ángulo 1: AQR
Ángulo 2: AMR Ángulo 3: CQP Ángulo
4: CMP
Ángulo 5: ABC Ángulo 6:AMC Ángulo 7:
RMP
Demonstração:
1) O quadrilátero AMQR é
inscritível: Os ângulos 1 e 2 são
iguais
2) O quadrilátero CMPQ é inscritível:
os ângulos 3 e 4 são iguais
3) O quadrilátero ABCM é inscritível:
os ângulos 5 e 6 são suplementares
4) O quadrilátero BMPR é inscritível:
os ângulos 5 e 7 são suplementares
5) De 3) e 4), os ângulos 6 e 7 são iguais.
6) Podemos escrever que o ângulo CMR é igual a
2+6, e também a 4+7
7) De 5) e 6), os ângulos 2 e 4 são iguais
8) De 1) e 2), os ângulos 1 e 3 são iguais
9) 1 e 3 sendo opostos pelo vértice, os pontos P, Q e
R serão alinhados.
"Todas as nossas obras,
todos os nossos professores, nos seus cursos, se acham
obrigados a reproduzir, como um modelo de análise
ou de síntese, a demonstração
clássica (devida, creio, a Duhamel) do teorema
relativo à reta de Simson; esta
demonstração é longe de ser simples,
e tal como é apresentada, ela não prova
nada." ( (B.M.E., 4, 1899, p. 273).
"Um similar raciocínio
é válido somente para o caso da figura
considerada, e ainda pode acontecer que este caso
não possa se apresentar, se a figura que é
traçada for falsa. Em todos os casos, para ser
rigoroso, seria necessário começar a
procurar todos os casos possíveis de figuras, o
que não parece cômodo, no caso
atual." ( (B.M.E., 4, 1899, p. 293).
"Diversos leitores me escrevem
dizendo que a demonstração clássica
é sem dúvida incompleta , mas que se sente
, que no caso de outras figuras, pode-se fazer uma
demonstração análoga e que isto
basta. Existe aí um erro, se quisermos tornar
rigorosa a demonstração clássica, a
dificuldade consiste precisamente em descobrir todos os
casos possíveis de figura." (B.M.E., 4,
1899, p. 273).
Ora, se procuramos efetivamente quais são as
configurações possíveis (donde somente
uma serve de apoio à demonstração
clássica) somos levados à
consideração das figuras seguintes. Para cada
uma delas, a demonstração deve ser modificada
(ângulos suplementares em vez de serem iguais,
coincidentes ou opostos pelo vértice, etc...)
Configurações
de Simson
Manipular o ponto M para explorar as
configurações de Simson
sobre esta construção Cabri-Java da famosa
figura.
(Contato para o projeto Cabri-Java: Gilles
Kuntz)
Para ver a imagem estática das
configurações de Simson, clicar
aqui:
Além disso, as somas dos ângulos,
consideradas no item 6 da demonstração
clássica, devem ser, às vezes,
substituídas por diferenças, ou de qualquer
maneira devem ser submetidas à
restrição clássica: a soma de dois
ângulos não pode, se queremos ainda falar de
ângulos, ser superior a dois retos
(definição de Euclides de ângulo). Da
mesma forma as diferenças eventuais não devem
conduzir a ângulos negativos, o que quer dizer que
numa figura onde se vê que o ângulo B é
inferior ao ângulo A ( e que se considera em seguida a
diferença A-B) deve-se demonstrar, precisamente , que
neste caso da figura, tem-se B<A E isto se aplica sobre
cada caso da figura.
L.Gérard dá duas
demonstrações da propriedade de Simson,
baseadas sobre o teorema do quadrilátero
inscritível enunciado em termos de ângulos
orientados de retas ( e portanto independentes do caso da
figura considerada). A primeira é calcada sobre a
demonstração clássica, a segunda
é ainda mais simples:
A- Adaptação da
demonstração "clássica" (cf. figura
precedente)
O quadrilátero AMQR é
inscritível: (AC,QR)=(QA,QR)=(MA,MR).
O quadrilátero CMPQ é inscritível:
(AC,QP)=(QC,QP)=(MC,MP).
O quadrilátero ABCM é inscritível:
(BA,BC)=(MA,MC)
O quadrilátero BMPR é inscritível:
(MR,MP)=(BR,BP)=(BA,BC)
(MR,MC)=(MR,MA)+(MA,MC)= - (AC,QR)+(BA,BC)
(MR,MC)= (MR,MP)+(MP,MC)=(BA,BC) &endash; (AC,QP)
Os pontos Q, P , R são alinhados
B- Uma demonstração
mais simples
O quadrilátero AMQR é
inscritível: (AM,AB)=(AM,AR)=(QM,QR)
O quadrilátero CMPQ é inscritível:
(CM,CB)=(CM,CP)=(QM,QP)
O quadrilátero ABCM é inscritível:
(AM,AB)=(CM,CB)
(QM,QR)=(QM,
Os pontos Q, P, R são alinhados.
"Esta
demonstração parece mais complicada que a
demonstração comum, onde se medem os
ângulos por arcos de circunferências; ela
é, ao contrário, incomparavelmente mais
simples, pois, para conseguir medir os ângulos,
é preciso inicialmente distinguir os diversos
casos de figuras possíveis e, repito, mesmo se
limitando ao caso da figura que está sob os olhos,
faltaria demonstrar que este caso é
possível: caso contrário pode-se demonstrar
tudo aquilo que se deseja. É assim que se
demonstra por um raciocínio bem conhecido que um
ângulo agudo é igual a um ângulo
obtuso." (B.M.E., 4, 1899, p. 293).
Outras demonstrações, mais modernas,
são possíveis, utilizando, por exemplo, as
propriedades de semelhança, mas fundamentalmente
é sempre o teorema do quadrilátero
inscritível que é à origem da
demonstração.
C- Uma demonstração
utilizando a semelhança.
Seja M um ponto do plano. Existe uma
única semelhança f de centro M fazendo
passar de AB a AC. A imagem de um ponto N qualquer de AB
por esta semelhança é o ponto N',
intersecção de AC e da circunferência
passando por A, M e N.
Seja H a projeção
ortogonal de M sobre NN'; o triângulo MNH permanece
semelhante a si mesmo quando N varia, portanto H descreve
uma reta (d) deduzida de AB por uma certa
semelhança . Conhece-se de fato dois pontos dessa
reta, os pontos Q (quando N está em A) e R (quando
N' está em A). A reta (d) é portanto a reta
QR
Se M está sobre a
circunferência circunscrita à ABC, C
é o transformado de B pela semelhança f e o
ponto H está em P, projeção
ortogonal de M sobre BC. Os pontos P, Q, R são
então alinhados.
Deixemos a palavra final mais uma vez a
L.Gérard:
"Quando se comparam duas
demonstrações, uma geral e a outra relativa
a um só caso de figura, somos inclinados a achar
que a segunda é mais clara que a primeira; mas
após refletir, percebe-se que as
expressões, os detalhes que pareciam obscuros ou
bizarros na demonstração geral são
necessários para abranger este ou aquele caso, o
qual não se havia prestado atenção
inicialmente." (B.M.E., 4, 1899, p. 273).
Reações?
Observações?
As reações à
contribuição de Michel Guillerault
serão
publicadas na carta da Prova de novembro/dezembro
©
Michel Guillerault 1998
Traduction
libre: Vincenzo Bongiovanni
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